Em meu último ensaio, tratei do tema da imunidade tributária dos miseráveis.[i] Nele, eu refletia sobre o conteúdo do mínimo existencial e abordei sua parte material: educação, saúde e assistência aos desamparados. Deixei, no entanto, para tratar sobre a parte instrumental em outra oportunidade. Chegou o momento. Nas próximas linhas tratarei da parte instrumental do mínimo existencial, ou seja, do acesso à justiça e algumas de suas implicações.
O acesso à justiça, como elemento instrumental do mínimo existencial, está ligado à forma de se garantir efetivamente os elementos materiais, em caso de não fornecimento pelo Poder Público. Três questões são importantes para discutirmos o tema: o ativismo judicial, o sequestro de verbas públicas e a capacidade financeira do Estado. São premissas intimamente ligadas para se evitar uma conclusão injusta, quanto à distribuição dos recursos do Estado.
Imaginemos, então, uma situação em que determinado adolescente pobre se vê desamparado pelo Estado com relação a sua educação. Na localidade onde mora não existe uma escola pública que o atenda. Somente escolas particulares que cobram um preço que ultrapassa as forças financeiras de sua família. A escola pública mais próxima fica em uma cidade contígua, a 100 km de distância de sua residência. A distância impossibilita seu acesso devido à dificuldade de transporte. Como esse adolescente terá seu direito atendido?
Duas formas podemos imaginar: uma, que não nos interessa, é por meio da caridade a outra é o exercício coativo do direito. Pela caridade, por exemplo, a escola particular poderia deixá-lo estudar de graça. Algumas escolas dão bolsas de estudo, mas não é tão simples quanto desejaríamos. A outra forma de ampará-lo seria por meio de uma ação na justiça proposta pelo adolescente. Para isso, ele precisaria de um advogado. Sem dinheiro, ele dependeria da caridade de um advogado ou o Estado deveria lhe fornecer assistência jurídica gratuita. Suponhamos, então, que haja uma Defensoria Pública estruturada[ii] em sua cidade e ele consiga ajuizar uma demanda contra o Estado. Aqui começa o nosso problema. O que o juiz vai fazer?
Deixar o adolescente sem estudar? Obrigar o Estado a construir uma escola em sua localidade? Pagar uma escola particular para o adolescente valendo-se de recursos públicos? Ainda que possa haver dúvidas como se dará a proteção do mínimo existencial, uma coisa é certa, o adolescente não pode ficar sem estudar. É preciso deixar registrado, desde já, que o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público ou a oferta irregular enseja a responsabilidade da autoridade competente. Essa é a determinação da Constituição.[iii] A penalidade, todavia, não vai permitir que o adolescente estude. É preciso algo concreto. Sobra, então, construir uma escola na localidade ou pagar uma escola particular para o adolescente estudar?
A resposta que se dê às perguntas acima vai desaguar no problema do controle judicial das políticas públicas, em virtude da necessidade da intervenção do Judiciário para garantir o direito do adolescente de estudar. Essa situação está ligada ao fenômeno do constitucionalismo que veio após a II Guerra Mundial e do ativismo judicial, que leva a uma participação mais intensa do Judiciário na proteção dos valores e fins constitucionais, interferindo no espaço de atuação dos demais Poderes.[iv]
Três causas são apontadas em doutrina para a judicialização da política.[v] A primeira é o reconhecimento de que ter um Judiciário forte e independente é essencial para as democracias modernas. A segunda causa envolve a desilusão popular com relação à política majoritária, em virtude da crise de representatividade. A terceira é estratégica, pois dependendo da questão a ser discutida (aborto, homossexualidade, abertura dos arquivos da ditadura, etc.) o desacordo moral pode comprometer a própria deliberação política, sendo preferível deixar a decisão polêmica para o Judiciário.
Críticas, ressalte-se, são feitas ao ativismo judicial, tais como a dificuldade contramajoritária, a capacidade institucional e a elitização do debate.[vi] O fato é, contudo, que o fenômeno existe. O Judiciário não costuma se omitir diante da defesa de um direito fundamental. Em nossa hipótese, ninguém discute que o adolescente precisa estudar. Assim, ou o Estado vai custear os estudos em uma escola particular ou vai ser obrigado a construir uma escola em determinado prazo ou, o que é melhor, as duas coisas acontecerão: custear em uma escola privada, enquanto não constrói uma escola pública adequada. Ao menos deveria ser assim. Aqui surge um problema: como realizar os custos, ou, para ser mais direto, de onde vai sair o dinheiro?
A realização dos custos envolve o delicado problema do orçamento público. Uma decisão judicial, pois, que determine ao Executivo custear uma escola particular ou construir uma escola adequada, necessariamente implicará no orçamento público do Estado. Neste caso, ficamos diante de uma estreita relação entre, de um lado, proteger o mínimo existencial e, de outro, aceitar o argumento da “reserva do possível”.
A “reserva do possível” se traduz em uma construção teórica, originária da Alemanha da década de 1970, que indica que a efetividade dos direitos sociais estaria a depender da capacidade financeira do Estado. A “reserva do possível”, assim, dependeria de três pressupostos: a disponibilidade fática dos recursos; a disponibilidade jurídica e, ainda, a proporcionalidade da prestação.[vii]
Em que pese devêssemos levar em consideração essa construção teórica para fins de balizamento para os direitos sociais, considerados de forma ampla, a “reserva do possível” não deve ser empecilho para a concretização do mínimo existencial. É que aqui estamos tratando de direto que vem antes mesmo de qualquer consideração relacionada a direitos sociais. Estamos falando da própria condição de existência digna do ser humano. É preciso, neste caso, criatividade e bom senso do Judiciário para que a questão possa ser solucionada. Como já dito, o adolescente tem o direito de estudar. O que fazer?
Não havendo uma proposta do Estado para a solução do problema – em nossa hipótese o custeio da educação – a solução passa necessariamente pela possibilidade do sequestro de verbas públicas. Não se trata apenas de uma questão jurídica, mas, também, de uma questão moral. Explico.
Nos assusta a quantidade de dinheiro público que se gasta com despesas que, possamos dizer, não são essenciais. Em 2012, por exemplo, somente com sites na internet o Governo Federal gastou quase 100 milhões de reais.[viii] Do ano de 2000 até 2013, de acordo com dados da Secretaria de Comunicação Social, mais de 10 bilhões em recursos públicos federais foram destinados à emissoras de televisão para publicidade, sendo que só em 2012 foram gastos quase 2 bilhões.[ix] Não é possível que o princípio da publicidade exija tantos recursos públicos, enquanto que direitos básicos relacionados ao mínimo existencial fiquem desamparados com argumentos relacionados à “reserva do possível” ou “insuficiência de recursos”. Essa situação não pode perdurar.
Proponho, então, que nos casos em que se necessite de recursos públicos para a proteção do mínimo existencial que as verbas públicas destinadas à publicidade sejam as primeiras a serem sequestradas. Em princípio, com essa atitude do Judiciário, não haveria o argumento de que outros adolescente que não tiveram acesso ao Judiciário estariam sendo prejudicados. Eles já não são amparados por tais verbas.
É possível imaginar outras verbas que poderiam ser sequestradas para garantir o mínimo existencial, como as destinadas a gastos suntuosos de determinados órgãos. A verba de publicidade fica mais evidente, em princípio. Certas verbas de publicidade sobre o sucesso de determinado governo, principalmente em ano de eleição, poderiam ser consideravelmente reduzidas. Já permitiria, ao menos, ao nosso amigo adolescente estudar.
[i] SANTIAGO, Julio Cesar. O Mínimo Existencial e a Imunidade Tributária dos Miseráveis. Disponível em: https://juliocesarsantiago.com.br/2015/03/13/o-minimo-existencial-e-a-imunidade-tributaria-dos-miseraveis/
[ii] Essa estrutura da Defensoria Pública pode ser enquadrada dentro do problema relacionado ao acesso físico ao Judiciário (cf. BARCELOS, Ana Paula. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 342-49).
[iii] Ver Constituição de 1988, art. 208 § 2º.
[iv] BARROSO, Luís Roberto. O Novo Constitucionalismo Brasileiro: contribuição para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Forum, 2012, p. 246.
[v] BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 242-43.
[vi] BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 250.
[vii] SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, Mínimo Existencial e Direito à Saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Benetti Luciano (org.). Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
[viii] Ver http://www.conjur.com.br/2013-jul-04/criterios-confusos-governo-concentra-verba-publicidade-20-sites
[ix] Ver http://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2013/04/22/globo-r-59-bi-de-verbas-estatal-de-propaganda-federal-desde-2000/