Até 2012, o Brasil tinha aproximadamente 6 milhões de pessoas vivendo em condições de extrema pobreza. O que significa viver com um rendimento médio domiciliar per capita de R$ 70,00 mensais. Se formos considerar também o pobre, quem recebe R$ 140,00 mensais, esse número sobe para 15 milhões de pessoas.[i] É ainda uma situação lamentável saber que pessoas tem dificuldade de levar uma vida digna. Muitas pessoas, não só no Brasil, mas no mundo, não tem culpa de terem nascidas pobres. Será que a ciência jurídica pode ficar alheia a essa situação? E a ciência tributária, será que ela deve ignorar esses fatos?
A questão do mínimo existencial, pois, está intimamente ligada à questão da pobreza. Antes da Revolução Francesa em 1789, a pobreza era assunto da Igreja e não do Estado. Havia uma valoração inversa da que se tem hoje. A pobreza era cultuada e a riqueza demonizada. Em que pese a demonização da riqueza, era tarefa da Igreja e cristãos ricos dar assistência social aos pobres. A situação era tratada no campo da caridade, da esmola. Os pobres, contudo, não tinham imunidade tributária, ou seja, também pagavam impostos.
Se observarmos nossa Constituição de 1988, logo no início, no art. 3º, III, existe uma determinação de que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Tudo que é possível de ser feito, portanto, que vise diretamente atingir esse desiderato é legitimado pela nossa Constituição. Nossa Constituição, pois, não quer a existência de pessoas vivendo sem o mínimo existencial, ou seja, em estado de extrema pobreza.
O art. 7º, IV, que trata da proteção aos trabalhadores, nos dá uma indicação do que a Constituição considera como mínimo existencial. Ali se diz que o salário mínimo deve atender as necessidades vitais básicas “com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Esse catálogo de necessidades vitais básicas já estava praticamente elencado na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). Na Constituição de 1946, art. 15 § 1º, já havia previsão de não incidência do imposto de consumo sobre os bens que a lei considerasse como o mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica. Não se tratava de um “favor legal”. Era uma determinação constitucional. Era um pacto social.
Quando olhamos para nossa realidade, sabemos que dificilmente o salário mínimo consegue atender a todas aquelas necessidades. Hoje, o salário mínimo possui o valor de R$ 724,00. Para a nossa legislação, esse é um valor que está acima do mínimo existencial. O parâmetro brasileiro, legislativo e monetário, de mínimo existencial é o que consta da Lei 10.836/2004, ou seja, do Programa Bolsa Família.
De acordo com art. 2º, I e § 2º da Lei do Programa Bolsa Família, o benefício básico é destinado à unidades familiares que se encontrem em situação de extrema pobreza. O valor do benefício básico é de R$ 58,00 (cinqüenta e oito reais) por mês, concedido à famílias com renda familiar mensal per capita de até R$ 60,00 (sessenta reais). O art. 2º, IV diz que o benefício para a superação da extrema pobreza será concedido à famílias que possuem a renda per capita mensal de R$ 70,00. É um valor muito baixo para se manter no mês. O pobre não quer esmolas, ele quer uma vida digna.
É preciso, urgentemente, que se utilize a tributação em prol do combate à extrema pobreza. Eu proporia, então, que os gastos dos alimentos de primeira necessidade consumidos pelo pobre sejam imunes a qualquer imposto. E não estou tratando de isenção tributária, onde a questão ficaria à discricionariedade do legislador infraconstitucional. Estou tratando de limitação constitucional ao poder de tributar. Um reconhecimento da sociedade de que a tributação pode servir para auxiliar essas pessoas a saírem da miséria.
Assim, por exemplo, ao comprar o feijão e o arroz no mercado, aquele que se encontre na pobreza, de posse de sua nota fiscal, poderia ir a um posto autorizado resgatar o valor que lhe foi cobrado de imposto. Ou, se a praticidade exigir, o comerciante venderia o produto sem incidência tributária dos impostos que normalmente recaem diretamente na operação e depois se compensaria com outros débitos tributários. Estou, nesse momento, apenas refletindo sobre a forma de concretizar esse desejo constitucional de erradicar a extrema pobreza com o auxílio do direito tributário, em especial de se conceder imunidade a produtos essenciais consumidos por pessoas pobres.
Hoje, essas questões ficam ao sabor da política fiscal do governante. Em 2013, um grande pacote de desonerações da cesta básica foi anunciado em relação aos tributos federais.[ii] O problema é que essas isenções tributárias nem sempre chegam ao consumidor. O preço do produto depende de uma série de fatores que muitas vezes escapam à política fiscal. Ano passado, por exemplo, o preço do tomate subiu, porque houve muita chuva. Esse ano já se fala em nova elevação no preço do tomate, por conta da ausência dela.[iii] A natureza – chuva, seca, geada… – é que está determinando a formação do preço. O homem há muito não consegue prever a natureza.
A mesma justificativa para o aumento do preço, então, poderia ser utilizada para produtos necessários à sobrevivência daqueles que estão em situação de extrema pobreza. De outro lado, ainda que chegasse ao consumidor final do produto, a desoneração fiscal não seria uma política exclusivamente voltada para o combate à pobreza, pois beneficiaria também o rico. A Chefe do Executivo federal chega a ter que apelar para o bom senso dos empresários para que o preço possa diminuir com as isenções tributárias concedidas.[iv]
Mas não é só. O mínimo existencial não tem a ver somente com uma determinada expressão monetária fixada em lei. Mas se relaciona, também, com a própria existência e desenvolvimento do ser humano. Não é o caso de se considerar os miseráveis apenas como um repositório de benefícios sociais. Devemos, pois, considerá-los como “agentes ativos de mudança” social.[v] A pobreza deve ser vista como um fator de limitação da capacidade do indivíduo e não somente como uma questão de se ter baixo nível de renda.[vi] Combater a pobreza é permitir que o cidadão pobre usufrua de sua liberdade.
Essas situações nos levam a refletir, ainda mais, sobre a necessidade de haver estudos sobre a Teoria do Mínimo Existencial, difundida no Brasil por Ricardo Lobo Torres, em sua obra “O Direito ao Mínimo Existencial”. Não se trata de uma teoria exclusivamente axiológica. Vai além, como justifica Ricardo Lobo Torres ao enumerar suas características.
A Teoria do Mínimo Existencial é normativa porque se preocupa com a concretização do mínimo existencial e não somente com explicação de fenômenos, como as ciências sociais da realidade; é interpretativa, porque projeta conseqüências sobre a interpretação dos direitos fundamentais; é dogmática porque dá concretude aos direitos fundamentais a partir da legislação e jurisprudência. A Teoria do Mínimo Existencial está, ainda, ligada aos princípios ou aos direitos morais, o que faz dela uma importante teoria para a legitimação dos direitos fundamentais.[vii]
O que seria, então, esse mínimo existencial, que deve ser protegido e garantido pelo Estado? Aqui é o grande problema, pois o que quer que se inclua nesse rol de direitos, pode esbarrar na própria capacidade do Estado de provê-los. Inclusive, a capacidade financeira.[viii] Uma proposta para se estabelecer um conteúdo para o mínimo existencial é a que estabelece quatro elementos, ao menos: três materiais e um instrumental.[ix] Pertenceriam a este catálogo a educação, saúde e assistência aos desamparados, como elementos materiais. E, ainda, o acesso à justiça, como elemento instrumental.
A educação, nos termos do art. 208, I e VII da Constituição, a compor o mínimo existencial, seria a educação básica obrigatória. Aquela que vai dos 4 aos 17 anos de idade, mesmo que não se tenha obtido a educação básica no tempo oportuno. Deste modo, o adulto que não teve a oportunidade de estudar também estaria amparado. Isso não significa, contudo, que o Poder Público ao cumprir esse dever mínimo está livre de continuar investindo na educação. O que supera o mínimo fica no campo dos direitos sociais, a depender da implementação de políticas públicas.
A saúde, como expresso no art. 196 da Constituição, é direito de todos e dever do Estado.[x] No Brasil, contudo, a impressão que fica é que esse dever não é cumprido. Basta ir aos hospitais brasileiros para saber que o pobre é tratado como objeto. Isso é no país todo. Infelizmente, o Sistema Único de Saúde, ultrapassados mais de 25 anos da existência da Constituição, ainda não conseguiu universalizar a saúde. Um pouco por conta da má gestão, um pouco por conta da privatização da saúde, que atrai grande parte de recursos públicos.[xi]
Ainda nos elementos materiais, por fim, temos a assistência aos desamparados, consubstanciada em alimentação, vestuário e abrigo.[xii] A alimentação, vestuário e abrigo aos desamparados, no Brasil, ainda depende muito da caridade de terceiros ou da Igreja. Não existe, ao menos de forma institucionalizada, um programa aos necessitados que os atenda de forma digna. A pessoa que tem fome no Brasil não tem um lugar para saciá-la de imediato. Existem pouco mais de 70 restaurantes populares espalhados pelo Brasil, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS.[xiii] Vestuário, também depende de doações. Abrigo, segue a mesma sorte. Os que existem são “depositórios de seres humanos”, necessitando sempre da intervenção do Ministério Público.[xiv]
Não obstante isto, existe a Lei 11.346/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que tem dentre seus princípios a “universalidade e equidade no acesso à alimentação adequada”. No orçamento de 2013 do MDS impressiona a dotação orçamentária de 2,5 Bilhões destinados à Secretaria Nacional de Segurança Alimentar. Desse montante, pouco mais de 100 milhões, apenas, havia sido gasto.[xv]
Há, por fim, ainda a compor esse mínimo existencial, o elemento instrumental: o acesso à justiça. Esse é um tema tormentoso, pois ao mesmo tempo que envolve o direito do desamparado em ir adequadamente ao Judiciário exigir que o mínimo existencial seja atendido, envolve a capacidade financeira do Estado em suportar as crescentes demandas individuais. Além disso, nos remete à reflexão sobre o ativismo judicial relacionado ao mínimo existencial. Diante da extensão do tema, deixarei para um segundo ensaio as reflexões sobre a parte instrumental do mínimo existencial.
[i] Cf. IPEA. Duas Décadas de Desigualdade e Pobreza no Brasil Medidas pela Pnad/IBGE. Comunicado nº 159, 01 out 2013.
[ii] A Lei 12.839/2013, conversão da MProv nº 609 de 2013, reduziu a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/Pasep, da Cofins, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita decorrente da venda no mercado interno e sobre a importação de produtos que compõem a cesta básica.
[iii] EXTRA. Preço do tomate sobe no atacado e volta a pesar no bolso do consumidor. 11 mar 2014. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/economia/preco-do-tomate-sobe-no-atacado-volta-pesar-no-bolso-do-consumidor-nas-feiras-quilo-ja-vendido-r-5-11843526.html>.
[iv] ESTADÃO. Dilma isenta cesta básica de impostos federais. 8 mar 2013. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,dilma-isenta-cesta-basica-de-impostos-federais,146613,0.htm>.
[v] SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 11.
[vi] SEN, Amartya. Op. cit., p. 120.
[vii] TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial. 2ª tiragem, out. 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 28.
[viii] Deixo aqui de enfrentar o tema por conta do espaço deste ensaio, pois esbarraria nas reflexões sobre o que se denomina de “Reserva do Possível”, demandando basicamente outro ensaio. Para um debate sobre a questão v. SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
[ix] A classificação é de Ana Paula de Barcellos (v. BARCELOS, Ana Paula. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 302).
[x] Dizer que tipo de tratamento de saúde o Estado estaria obrigado a suportar é um tema também polêmico que ultrapassa as forças desse ensaio. Para uma tentativa de estabelecer conteúdo para a saúde v. BARCELOS, Ana Paula. Op. cit., p. 320-37.
[xi] IPEA. A Saúde do Sistema Único. Ano 10. Ed. 76. 25 fev 2013. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2911:catid=28&Itemid=23>
[xii] BARCELOS, Ana Paula. Op. cit., p. 337.
[xiii] BRASIL. Disponível em <http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/equipamentos/restaurantespopulares>.
[xiv] AGÊNCIA BRASIL. MP-RJ entra com terceira ação para regularizar abrigo de moradores de rua. 11 fev 2014. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-02/mprj-entra-como-terceira-acao-para-regularizar-abrigo-para-0>.
[xv] BRASIL. Execução Orçamentária do MDS – 2013. Disponível em <http://www.mds.gov.br/acesso-a-informacao/despesas/Execucao%20MDS%20ate%2021%20de%20setembro%20de%202013.pdf>.