A imunidade tributária é um dos institutos extremamente relevantes dentro de nosso sistema tributário nacional. Ela revela nossa intenção, no momento da Constituinte, em proteger certas liberdades que não poderiam ser atingidas pela tributação, sob pena de comprometer a própria harmonia do Estado Democrático de Direito. A imunidade tributária, então, está ligada à limitação do poder de tributar do Estado em virtude de certas liberdades preexistentes do indivíduo com fulcro nos direitos fundamentais (TORRES, 2005, p. 59). Onde há imunidade, não há poder de tributar.
Pelas imunidades tributárias, por exemplo, são protegidas a própria harmonia da federação (150, VI, a), a liberdade de culto (150, VI, b), liberdade partidária, sindical e as decorrentes do mínimo existencial, assistência social e educação (150, VI, c). Em torno das imunidades tributárias, existe um desejo de se proteger determinados direitos fundamentais.
A imunidade tributária, importante dizer, não é só uma regra de limitação ou complementação das regras inerentes à competência tributária. A imunidade tributária sinaliza o sentido pelo qual uma tributação seria considerada justa em um dado sistema tributário. Não é qualquer não incidência que se coloque na Constituição, portanto, que se atribuirá a ideia de imunidade. Existe um valor intrínseco às imunidades tributárias que deve ser respeitado.
Existe, ainda, uma orientação decorrente da própria igualdade, que parte do princípio de que todos devem contribuir para a manutenção do Estado. Os Estados atuais não conseguem sobreviver sem contribuintes e impostos (TIPKE, 2002, p. 27). Nossa Constituição, por sua vez, trouxe uma série de direitos sociais a serem garantidos pelo Estado, que devem ser custeados com a receita decorrentes dos impostos. Para que haja, assim, uma opção pela não tributação, em nível constitucional, é preciso que haja um fundamento razoável e forte em sua fundamentação.
No final de 2013, no entanto, o Congresso Nacional aprovou a EC 75, conhecida popularmente como PEC da música. A Emenda acrescentou, no catálogo das imunidades tributárias do art. 150, VI, uma nova alínea (“e”) visando a proteção constitucional. De modo geral, ela visa proibir a incidência de impostos nos CDs, DVDs e mídias digitais produzidos por autores nacionais.
A EC 75/2013 é fruto da PEC 98/1997 e teve como principal justificativa reduzir os custos de produção, a fim de atrair o consumidor final e combater a pirataria. Tão logo aprovada, o Estado do Amazonas ingressou no STF com a ADI n. 5.058, questionando a constitucionalidade da emenda. O principal fundamento da ADI é a violação ao art. 151, I, CF, que aborda a questão do incentivo fiscal, visando equilíbrio entre as regiões, e aos arts. 40 e 92 do ADCT, que tratam do incentivo fiscal à Zona Franca de Manaus. Para o Estado do Amazonas, haveria um risco de migração das indústrias ali instaladas para fora da Zona Franca.
É preciso que se diga, desde já, que esta não incidência constitucional, referente à indústria da música, não se consubstancia em uma imunidade tributária. Como dito no início, as imunidades tributárias tem como fundamento a proteção de certas liberdades desejadas pelo constituinte originário. Pensar o contrário é argumentar que tudo que se coloca na Constituição como não tributado seria uma imunidade. Seria desconsiderar os valores que norteiam o direito e adotar algum tipo de formalismo jurídico.
Suponhamos, por exemplo, que o setor automobilístico estivesse passando por uma grave crise de produção, em decorrência de uma crise econômica global. Diversos postos de trabalho estariam ameaçados. Diante deste cenário, o constituinte derivado resolve acrescentar à Constituição que nenhum imposto poderá incidir sobre a produção automobilística. Será que esta não incidência constitucional seria uma imunidade tributária, simplesmente por estar localizada no texto constitucional? É possível questionar, caso a hipótese acima se concretizasse, por que somente o setor automobilístico seria contemplado e não outros setores que também são atingidos por crises econômicas?
Antes da era digital, ainda exemplificando, as empresas contratavam somente secretárias que tivessem curso de datilografia. Datilografar rápido e sem olhar para o teclado da máquina de escrever era uma vantagem de quem fazia um curso desse tipo. O mundo, no entanto, mudou com a era virtual e o que foi feito com esses cursos de datilografia? As empresas que não acompanharam a mudança deixaram de existir naturalmente. Nem por isso, importa dizer, se colocou na Constituição um privilégio para as empresas que prestavam serviços de datilografia. O mesmo problema pode ser referido analogamente a outras atividades econômicas que deixaram de existir com a revolução tecnológica. Não estou defendendo a extinção da indústria musical, mas com toda certeza, ela precisa se reinventar, diante da revolução tecnológica. Isso, porém, não é uma questão jurídica.
A PEC da música, podemos afirmar, não traz como fundamento nenhum tipo de liberdade. Ainda que se possa afirmar que o objetivo foi promover a cultura, é complicado resumir toda o pensamento de uma sociedade a um setor apenas. Outras espaços de manifestação cultural são tão ou mais importantes do que a indústria musical para promover a cultura. De outro lado, a própria Constituição traz uma seção destinada à proteção da cultura (art. 215), remetendo à lei eventuais incentivos fiscais aos segmentos culturais. A Constituição, pois, visou dar um tratamento igualitário ao fomento cultural em suas várias manifestações.
Desde 1991, existe o Programa Nacional de Apoio à Cultura, PRONAC, instituído pela Lei 8.313 onde se previu o FICART, o Fundo de Investimento Cultural e Artístico. A mesma lei prevê, também, a possibilidade de deduzir do imposto sobre a renda as quantias despendidas com os projetos culturais previstos na lei. Se o setor da indústria musical não foi contemplado de forma abrangente pelo PRONAC é uma questão que pode ser discutida. Mas a omissão legal, ainda sim, não é fundamento justo e razoável para uma não incidência em nível constitucional.
De outro lado, combater a pirataria ou reduzir custos, por si só, não são fundamentos para uma imunidade tributária. A pirataria é crime e se combate no meio adequado. A tributação, ainda que extrafiscal, não se destina a combater crimes. Desde 2004, com a edição do Decreto 5.244, existe o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual, órgão colegiado consultivo, integrante da estrutura do Ministério da Justiça. Este órgão, integrado também por representantes da sociedade civil, tem por finalidade elaborar as diretrizes para a formulação e proposição de plano nacional para o combate à pirataria, à sonegação fiscal dela decorrente e aos delitos contra a propriedade intelectual. Na página da internet do Ministério da Justiça existe uma série de relatórios do que tem sido feito, desde então. Não é só o setor da musica que é pirateado. Filmes, vestuário, calçados e muitos outros também são e nem por isso gozam de privilégio constitucional.
Quanto à redução de custos, é discutível se a desoneração do setor trará uma redução do preço final do produto. Seria preciso que as empresas não mexessem em sua margem de lucro e milhares de outras decisões que influenciam a formação do preço de um bem (MANKIW, 2008, p. 123). Isso, porém, não é tão exato quanto à matemática possa sugerir. E, ainda que fosse simples, a situação econômica de um setor não tem a ver com liberdade que se quer proteger pelas imunidades, mas, sim, com a política econômica que cada governo adota ao longo do tempo, além do próprio comportamento dos agentes econômicos do setor.
É possível refletir, no entanto, se o constituinte derivado, ainda que não se qualifique a EC 75 como uma imunidade, poderia estabelecer uma não incidência específica para a indústria da música com a justificativa do combate à pirataria e fomento à cultura. Neste caso, poderíamos estabelecer dois planos de análise. Um sob o manto da igualdade e outro sob o enfoque da razoabilidade.
Sob o plano da igualdade, a Constituição é clara em vedar qualquer distinção entre contribuintes “em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida” (art. 150, II). Trata-se da aplicação da igualdade geral (art. 5º) especificamente ao Sistema Tributário Nacional. Não pode haver distinção entre brasileiros e estrangeiros em razão da profissão que exercem. O que a EC 75 faz, ao desonerar a indústria musical, é privilegiar diretamente, sem um critério justo (“pirataria” e fomento à cultura), os produtores musicais brasileiros que trabalham neste setor. O resultado do trabalho (a coisa) foi desonerado (privilégio “real”), consequentemente tais profissionais são diretamente beneficiados, sem, contudo, uma justificativa justa. Um setor econômico não existe, por si só. Por trás de cada setor existem profissionais que nele trabalham.
Em outro enfoque, a discriminação constitucional para a indústria da música não passa pelo crivo da razoabilidade (ou proporcionalidade). Para haver respeito a este princípio é preciso que haja adequação do meio empregado, necessidade da medida e proporcionalidade em sentido estrito (BARROSO, 2012, p. 168). Se o objetivo da medida era fomentar a cultura ou combater a pirataria, o meio utilizado extrapolou tais pressupostos.
Quanto à cultura, o Constituinte originário já sinalizou como os direitos culturais podem ser protegidos e incentivados no art. 215, o que fundamentou a instituição do PRONAC. No que tange à pirataria, existem diversos órgãos de combate a este crime, como o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual, mencionado acima. Isso já demonstra que a EC 75 não era necessária, estabelecendo, então, um privilégio injustificado a determinado setor, consequentemente a determinados profissionais.
Uma emenda constitucional tem um peso muito grande dentro de nosso sistema jurídico. A começar pelo próprio quorum qualificado de aprovação. O motivo de discriminação constitucional deve ficar muito claro ao se estabelecer uma não incidência constitucional, como ocorre com as não incidências às receitas decorrentes de exportações. A desoneração das exportações tem com um dos objetivos aumentar a competitividade das empresas – quaisquer delas – no cenário mundial, além de trazer importantes divisas para o país, beneficiando o mercado interno, patrimônio nacional (art. 219, CF).
As desonerações da indústria da música, via emenda constitucional, não tem um motivo forte o suficiente para constar da Constituição, devendo os privilégios fiscais a ela relacionados serem tratados dentro do sistema de fomento à cultura junto com outras manifestações culturais, tal como desejado pelo constituinte originário. Socorrer atividades econômicas específicas, via privilégio fiscal constitucional, desvaloriza a Constituição, tornando-a cada vez mais casuística e enfraquecida em sua legitimidade democrática.