CARF E VOTO DE QUALIDADE

“CARF e voto de qualidade: duas justificativas constitucionais” foi escrito para o portal de notícias Jota.


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CARF e voto de qualidade: duas justificativas constitucionais

Não é só pelos 2% de casos julgados que o voto de qualidade no CARF é constitucional

O direito tributário tem sido brindado, nos últimos tempos, com grande atenção da mídia. Ano passado, tivemos a chamada “tese do século”, que nem de longe merecia essa alcunha. Uma injustiça até com as gerações futuras, já que o século mal começou. Tratava-se, na ocasião, do Tema 69, em que o STF definiu a extensão do julgado sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS. Na verdade, a definição não foi tanta assim, já que mais complexidades virão, diante dos efeitos oriundos daqueles fundamentos. Já se fala até em “teses filhotes” decorrentes daquele precedente.

Neste ano, já nos seus primeiros dias, o foco se voltou para o voto de qualidade nos julgamentos do CARF. A mídia descobriu o que é o CARF. Mesmo quem não é especialista em direito tributário sabe o que o CARF faz. Sabe que o CARF julga as autuações fiscais em matéria federal. Sabe que a existência ou não do voto de qualidade tem sido fundamental para a arrecadação fiscal.

Há quem defenda a extinção do próprio CARF, sob o argumento de que se tornou um espaço em que se privilegia determinadas corporações empresariais, em verdadeira “revisão empresarial” dos instrumentos de combate à sonegação.[i] No passado, iniciativas legislativas foram no mesmo sentido.

À época da Operação Zelotes,[ii] por exemplo, se tentou extinguir o CARF por meio de Decreto Legislativo, nos termos do art. 49, V da CF. A Proposta de Decreto Legislativo nº 55, de 2015 visava suspender artigos do Decreto 70.235/72, que dispõe sobre processo administrativo fiscal federal. A justificativa era que o Poder Executivo extrapolara o poder regulamentar. Contudo, a proposta não passou pela Comissão de Constituição e Justiça, diante da sua inconstitucionalidade. O Decreto 70.235/72, pois, foi recepcionado como lei ordinária, com o advento da Constituição de 1988. Isso impossibilitaria sua suspensão por Decreto Legislativo.

O fato é que a Lei 11.941/2009, ao criar o CARF, com o objetivo de unificar os antigos Conselhos de Contribuintes, estabeleceu que ele é um órgão colegiado e paritário. E muitos se apegam a essa paridade como único argumento para defender a legitimidade de que o resultado, em caso de empate, seja favorável aos contribuintes. Ou, ao menos, para que haja rodízio entre representantes da Fazenda Nacional e contribuintes na atribuição para proferir o voto de qualidade.[iii]

É preciso registrar que o CARF não é um Tribunal como os outros, que tem assento expresso na Constituição. Não é como um Tribunal de Contas da União, previsto no art. 73. Não é como o Tribunal Regional Eleitoral, previsto no art. 120. Tampouco, se iguala ao Supremo Tribunal Federal, previsto no art. 101.

O CARF sequer é citado constitucionalmente, como são os órgãos que participam diretamente do contencioso tributário e da administração tributária federal, tais quais, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Receita Federal do Brasil, respectivamente nos arts. 131 e 116 § 5º da Constituição. E o próprio Ministério da Fazenda, no art. 237.

O CARF é um órgão do Ministério da Fazenda, de estrutura colegiada e paritária, com o objetivo, primordial, de revisar os atos administrativos de constituição do crédito tributário e demais obrigações decorrentes da tributação federal.

O STF, importante ressaltar, já decidiu que  não existe a garantia ao duplo grau de jurisdição na seara administrativa,[iv] embora tenha dito antes que viola a ampla defesa e o direito de petição exigir depósito prévio para recorrer na via administrativa.[v] O que se conclui, por ora, que uma vez existente uma estrutura recursal administrativa prevista em lei, não se deve criar obstáculos econômicos ao seu acesso. Mas, isso não significa que esta mesma estrutura recursal seja obrigatória. Pode o Poder Executivo, por exemplo, estabelecer instância única para a revisão de seus atos, ou mesmo estabelecer uma estrutura recursal, sem que haja a participação dos contribuintes – embora não seja o ideal, como falarei adiante.

E isso já existe, quando se coloca limite de alçada para se chegar ao CARF. Quando se institui que determinados processos de “baixa complexidade” ou “pequeno valor” não serão apreciados pelo CARF. Ou, ainda, quando limita o acesso ao CARF para determinados sujeitos passivos, como pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte. Todos serão apreciados em segunda instância por um órgão da estrutura interna da Receita Federal do Brasil.[vi] Mas, poucos sustentam a inconstitucionalidade dessa estrutura.[vii] A preocupação é com o voto de qualidade, que somente é exercido no caso de empate.

Então, dois pontos merecem destaques neste ensaio. A justificativa para a manutenção do voto de qualidade e a justificativa para a manutenção do CARF, de modo paritário, dentro da estrutura de revisão de atos administrativos.

Em primeiro lugar, importante estabelecer esta premissa: estamos diante de uma estrutura de revisão de atos administrativos, que se justifica na autotutela da administração pública.[viii] Tais atos envolvem a constituição hígida de créditos tributários, que devem respeitar, além da Constituição Tributária, os próprios princípios que norteiam o agir da Administração Pública, que constam do art. 37 da Constituição: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Com efeito, devido à complexidade da vida, complexidade da economia, consequentemente, complexidade da tributação, a Constituição impõe que se revisem os atos administrativos. Isso porque o erro faz parte da natureza humana. O fiscal erra, o contribuinte erra, todos podem errar. Uma revisão colegiada – ainda que se utilize uma estrutura parecida com a de tribunais – confere maior legitimidade aos atos administrativos e tem o condão, também, de minimizar os erros.

Não se pode perder de vista que, ainda que a estrutura se assemelhe a de um tribunal – com recursos e julgamentos colegiados – o CARF é um órgão do Ministério da Fazenda ou seja integrante do Poder Executivo. Quando profere uma decisão anulando ou mantendo o crédito tributário, é o Poder Executivo no exercício da autotutela que se manifesta. E, para que a legitimidade da decisão reflita essa manifestação do Poder Executivo, é preciso que a representatividade esteja com este mesmo poder. O voto de qualidade atribuído a um representante da Fazenda Pública, é a manutenção desta voz do Poder Executivo.

Quando o legislador, com a Lei 13.988/2020, privilegia o contribuinte individual no empate, interfere na manifestação do Poder Executivo. Ao agir assim, viola a separação e harmonia entre os Poderes, princípio fundamental da República, previsto no art. 2º da Constituição. Não afasta essa conclusão, o fato de os Conselheiros representantes dos contribuintes integrarem formalmente o CARF, e, consequentemente, a estrutura do Ministério da Fazenda. Eles não são eleitos ou indicados pelo Poder Executivo e não são aprovados em processo seletivo público, tal qual um concurso aberto a todos os cidadãos qualificados. Um parênteses.

A Portaria 329, de 2017, ao alterar o art. 28 do Regimento Interno do CARF estabelecia que os Conselheiros representantes dos contribuintes poderiam ser indicados em “lista tríplice elaborada pelas confederações representativas de categorias econômicas e pelas centrais sindicais, ou resultante de certame de seleção.” Ou seja, se tentou corrigir o fato de somente confederações indicarem representantes dos contribuintes.

A expressão “ou resultante de certame de seleção” possibilitava uma intepretação mais plural das escolhas dos representantes dos contribuintes. A expressão dava margem para que o certame fosse aberto ao público, em processo seletivo transparente. E não somente como é hoje em que apenas duas confederações – indústria e comércio – indicam a maioria dos representantes dos contribuintes. Mas, a Portaria MF nº 153, de 2018 revogou essa possibilidade, retomando a redação originária, em que as indicações são restritas, sem processo seletivo e apenas submetidas a uma análise curricular do candidato por uma comissão.

Manter o voto de qualidade com o representante da Fazenda Nacional, portanto, é uma exigência da separação e harmonia entre os poderes. É nas causas complexas e difíceis, em que as cosmovisões pública e privada conflitam, que o empate ocorre. É nessas causas – segundo alguns estudos em 2% dos casos, mas com bilhões de reais envolvidos – que se exige o voto de qualidade. É natural, então, que nesses casos difíceis o Judiciário seja o âmbito espacial mais adequado para decidir, diante de todas as garantias constitucionais que possui para se manter longe de pressões políticas, tanto do âmbito público, quanto privado. E, nessa circunstância, o contribuinte tem amplo acesso ao Judiciário.

A MP 1.160, de 2023, portanto, apenas pretendeu retomar a voz do Poder Executivo na definição da higidez do ato administrativo, em um contexto de autotutela de seus próprios atos, nas causas complexas e difíceis. Mas, então, por que manter a paridade no CARF? O que isso significa?

Como eu disse, o CARF não tem assento constitucional expresso, tampouco a Constituição Federal garante um direito fundamental ao duplo grau de jurisdição administrativa. O CARF, na verdade, se justifica na democracia deliberativa.

Ter cidadãos externos à estrutura da Administração Tributária, compondo a estrutura de revisão de atos administrativos que impõe a tributação, beneficia o debate. Isso porque limita a parcialidade, enriquece as perspectivas, aumenta o conhecimento do fato tributário e permite perceber eventuais erros no raciocínio para decidir. Mas não é só isso.

Ter cidadãos compondo a estrutura de revisão de atos administrativos – desde que essa representatividade seja efetiva e plural – demonstra igual consideração e respeito por todos os contribuintes. Não só àqueles que são litigantes profissionais, mas, também, em relação a todos os cidadãos que pagam seus tributos direta ou indiretamente e dependem do orçamento da União para viver. Mesmo que sequer saibam disso.

A paridade, portanto, não significa igualdade absoluta matematicamente considerada. Essa utopia, além de nunca ter sido um objetivo na história, é impossível no mundo real. As pessoas são diferentes em suas individualidades. Transformar a paridade em igualdade absoluta deturpa o sistema de revisão de atos administrativos, ainda mais em um contexto em que representantes dos contribuintes são indicados por apenas duas confederações, que nem de longe representam a totalidade de contribuintes desse país. E isso nada tem a ver com a imparcialidade, ou capacidade dos Conselheiros. Tem a ver com estrutura democrática.

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[i] Essa é a opinião de Ricardo Fagundes da Silveira e Wilson Luiz Müller. Para os autores, “o Carf deveria ser um órgão de revisão administrativa de autuações fiscais realizadas pela Receita Federal” em que se cancelariam os “erros e equívocos claros cometidos por agentes fiscais”. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2023-fev-01/silveirae-muller-extincao-imediata-carf?imprimir=1. Acesso em 26 mar. 2023.

[ii] Operação da polícia federal que investigou a corrupção no CARF em 2015.

[iii] Essa parece ser a opinião de Pedro Adamy, cf. ADAMY, Pedro. Voto de Qualidade no CARF: Violação ao Critério Paritário. Considerações de Lege Ferenda. Revista Direito Tributário Atual, (37), 358–380. Disponível em: https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/289. Acesso em 27 mar. 2023.

[iv] Cf. MS 34472 AgR / CE, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 2017. De acordo com Min. Dias Toffoli “A jurisprudência desta Suprema Corte está orientada no sentido de que a Constituição Federal de 1988 não erigiu garantia de duplo grau de jurisdição administrativa”.

[v] Ver Tema 314 da Repercussão Geral; Súmula Vinculante nº 21 e ADI 1976/DF. Nesta decisão o Relator Ministro Joaquim Barbosa assentou: “Não se discute, portanto, a existência dessa ‘segunda instância’, mas o acesso a ela.”

[vi] Ver arts. 23, 24 e 27-B da Lei 13.988/2020.

[vii] Pela inconstitucionalidade ver ensaio de Hugo de Brito Machado Segundo Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-18/consultor-tributario-consideracoes-mp-116023-restricao-acesso-carf. Acesso em 28 mar. 2023.

[viii] Ver súmula 473 do STF e art. 53 da Lei 9.784, de 1999.

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