Aqui perto de casa, há algum tempo, costumava, pela manhã, ir até a padaria próxima pedir um café com leite médio e um pão na chapa, antes de ir para o trabalho. Custava R$ 1,80. Era um preço justo, para quem não queria comprar o pão, passar a manteiga, pegar uma frigideira, esperar esquentar o pão, passar o café, misturar no leite e colocar o açúcar (colesterol lá em cima!). Foi só anunciarem a Copa do Mundo e o preço subiu para R$ 3,80. Hoje fui até lá. O desjejum não sai por menos de R$ 5,30. Cortei o pão, a manteiga, o açúcar, o café… já perdi 3 kg!
Em Natal, estréia do jogo entre Camarões e México. Chuva torrencial. Greve de ônibus. Taxistas extorquindo quem queria pegar um taxi. O trajeto de determinado ponto que custaria normalmente R$25,00, passou a custar R$ 50,00 ou R$ 60,00. Dizem que é a lei da oferta e demanda. Eu prefiro utilizar outro fundamento para isso. Mas falarei disso adiante.
Nos dois casos houve o aproveitamento de uma oportunidade para aumentar os preços. No primeiro caso, um evento que vai durar apenas um mês. No outro, as circunstâncias desse mesmo evento, somados ao caos provocados pela natureza, negligência da política urbana e desespero de quem já comprou o ingresso. Todo ano chove, todo ano tem alagamento, todo o ano não se faz uma política de contenção de enchentes…o problema dos que compraram ingressos é o menor deles. Só vão perder um jogo de futebol. Mas, e os que perderam suas casas nessas enchentes?
Essa oportunidade para aumentar os preços, voltando a ela, não veio de uma situação meritória. O produto e o serviço não foram incrementados. Ele não melhorou. É o mesmo serviço. É o mesmo produto. Por que aumentar o preço, então? Aumento dos impostos? Não! Ganância, oportunismo, especulação… Traduzindo: necessidade de maximizar os lucros sempre. Quanto mais, melhor. Não importa em que situação. Mesmo que, para isso, seja preciso aproveitar uma oportunidade não merecida, em detrimento do outro.
Isso não é uma degeneração só do Brasil. Michael Sandel partiu de situação semelhante para escrever seu “Justiça”. Logo na abertura narra uma série de casos ocorridos nos Estados Unidos, em que se aproveitou uma oportunidade, em princípio injusta. Vou narrar uma. Em 2004, verão nos Estados Unidos, um furacão oriundo do Golfo do México destruiu a Flórida, causando um prejuízo de 11 bilhões de dólares e algumas mortes. Um debate foi provocado, diante daquela tragédia: os preços extorsivos.
Sacos de gelo que antes custavam dois dólares, passaram a custar dez dólares. Havia uma necessidade de refrigerar os alimentos. Diante da falta de energia elétrica, voltou-se aos tempos em que o gelo é que os conservava. Aproveitando-se dessa necessidade, empresas que fabricavam o gelo aumentaram os preços extorsivamente. E não foi só isso. “Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares”.[i] Uma pergunta surge para reflexão:
Será que a redução de impostos, em um contexto de busca pela maximização dos lucros, limitaria o aumento de preços, melhorando a qualidade de vida das pessoas?
Há quem defenda que sim, confundindo um sistema tributário quantitativo com um sistema de tributação justa. Reduzir o tributo para aumentar o consumo e acabar com a pobreza!… Há quem acredite nisso. Alberto Carlos Almeida, mais conhecido pelo seu “A Cabeça do Brasileiro”,[ii] escreveu em 2010 um livro em que defende a redução dos impostos e o aumento do consumo para acabar com a pobreza.
Em o “Dedo na Ferida”, o consumo e a diminuição de impostos parecem ser a solução para pobreza no Brasil. Parte-se da constatação de que o brasileiro “sabe que paga impostos e gostaria que eles fossem reduzidos para que se tornasse possível comprar mais produtos e serviços e gerar mais empregos”.[iii] Conclui-se, ainda, que “milhões de brasileiros pobres não têm carro por causa dos impostos” ou “a grande maioria dos brasileiros nunca entrou em um avião por causa do governo, não por causa das empresas”, além de dizer que a causa da criminalidade pode ser relacionada à carga tributária alta.[iv] O livro, contudo, teve influência em opiniões só de economistas, não de juristas, o que tende a deixar de lado a justiça da tributação, olhando apenas para números.
Em um sistema tributário quantitativo, o olhar do observador se volta para a carga tributária. Se volta para os números. Se eles estão altos ou baixos. É mais ou menos o que a maioria dos economistas que influenciam a grande mídia faz. Em um sistema tributário qualitativo, ou seja, fundamentado em uma tributação justa, o observador vai além. Ele está preocupado com quem paga o tributo. Ele está preocupado com quem não paga o tributo. É uma questão de moralidade do sistema. Infelizmente, poucos juristas envolvidos com a tributação se deram conta disso.
A redução de impostos, pura e simples, é preciso dizer, vai beneficiar quem já não paga impostos. Dados do IPEA demonstram que ricos pagam menos impostos que os pobres, gerando uma regressividade no sistema.[v] Reduzir impostos não muda essa lógica. Ricos vão continuar pagando menos impostos que os pobres, pois o sistema é injusto. O problema é qualitativo e não quantitativo. Quem deveria pagar, não paga, seja em virtude da sonegação fiscal propriamente dita, seja na possibilidade de extrair o máximo dos limites da legislação tributária, com planejamentos tributários duvidosos.
Vamos refletir, por exemplo, sobre a tributação em uma situação hipotética, que partilha dessa visão quantitativa. Suponhamos que João, Maria e José vivam em uma comunidade, onde todos deveriam pagar uma alíquota de 27,5% sobre suas rendas. João não possui “renda” mas, sim, “dividendos”, oriundos de uma empresa que herdou de seu pai. Nessa situação, por não receber renda, João não está submetido ao imposto sobre sua renda a uma alíquota de 27,5. Maria é funcionária na empresa de João, por essa razão recebe seu salário, com o desconto do imposto sobre sua renda. Maria tem um carro, onde paga IPVA e mora de aluguel, cujo imóvel pertence a José.
José, por sua vez, vive do dinheiro dos imóveis que herdou de seu avô e coloca em todas as cláusulas contratuais que quem deve pagar o IPTU de seus imóveis é o inquilino. Os imóveis não estão em seu nome formalmente, mas, sim, em uma holding familiar constituída no exterior. Maria paga IPTU. João não tem carro, só anda de helicóptero, não paga IPVA. Não é difícil dizer, na situação hipotética narrada, quem é a pessoa mais onerada pela tributação. Será que a diminuição de tributo nessa situação vai beneficiar proporcionalmente quem menos ganha? Se no mundo atual os ricos pagam menos impostos que os pobres, como a redução de impostos vai ser mais benéfica para todos?
O brasileiro não gosta de pagar impostos não é porque eles são muito altos. O brasileiro não gosta de pagar impostos, porque aqueles que formam a opinião pública ainda estão imbuídos por uma lógica utilitarista. Qual o benefício que se recebe do Estado para o tanto de imposto que se paga? Nenhum? Então temos que reduzir os impostos, pois o Governo rouba, gasta mal, não constrói escolas, nem hospitais…
O raciocínio, contudo, deveria ser outro. Pagamos imposto porque temos condições para isso, para que aqueles que não podem pagar possam ter escola, hospital, alimentos…se o Governo não os fornece, então eu vou cobrar do Governo mais saúde, educação, alimento…eleger alguém que pense nisso. Se alguém que deveria pagar, não está pagando, então eu tenho que exigir das autoridades fiscais (RFB, PFN…) que cobrem dessas pessoas. Devemos refletir sobre a justiça da tributação, então. Não, apenas, na redução dos impostos, como meio de uma hipotética “justiça social”.
[i] SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 11.
[ii] ALMEIDA, Alberto Carlos. A Cabeça do Brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2013.
[iii] ALMEIDA, Alberto Carlos. O Dedo na Ferida: menos impostos, mais consumo. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 31.
[iv] O Dedo na Ferida, p. 34-5.
[v] Cf. IPEA. Equidade Fiscal no Brasil: impactos distributivos da tributação e do gasto social. Comunicado nº 92, 19 maio 2011.