SOLIDARIEDADE TRIBUTÁRIA

Esta é a introdução do meu livro Solidariedade Tributária: como legitimar a tributação?. A obra é fruto de minha tese de doutorado, defendida na UERJ, aprovada com louvor e recomendada para publicação.


A obra está disponível em diversas livrarias.

Introdução

Os estudos sobre a solidariedade tributária são bastante escassos no Brasil. É possível afirmar que a solidariedade não integra diretamente as discussões que envolvem o direito tributário, em que pese o Brasil ser um país de milhões de pobres e miseráveis e com péssima distribuição de renda. Há pouco tempo não se falava nem em princípios nos estudos jurídicos. A Constituição Federal, tampouco, tinha a força normativa que lhe é peculiar na atualidade. Basta lembrar a histórica classificação de normas constitucionais que José Afonso da Silva desenvolveu.[1] Essa teoria, embora um avanço para a época, em virtude das Constituições serem tão somente um programa político, não possuía uma concepção de princípio com força normativa.[2] Esse cenário não propiciava, então, o aparecimento de um debate sobre solidariedade no campo tributário. Diversos fenômenos contribuíram para isso, dois ao menos são predominantes: o formalismo da doutrina tributária e o desinteresse pelos estudos axiológicos.

Com raras exceções, grande parte da doutrina tributária nacional não é devota de um debate mais amplo sobre a solidariedade no campo tributário porque sofreu a influência do positivismo adaptado. No Brasil, o positivismo se transformou em estudos da linguagem da lei. Essa postura supervalorizou o texto e as palavras da norma em detrimento da realidade. Conferiu ao intérprete, muitas vezes, a atribuição de sentidos sem as limitações do contexto social. O formalismo, em certo aspecto, foi importante em uma época de insegurança jurídica em regimes ditatoriais, onde a norma era imposta por um centro de autoridade, sem muito espaço para debates. O tempo, contudo, se revela tão veloz que é preciso atualmente voltar-se para os institutos jurídicos tributários, para demonstrar o contexto de mudança social, onde se conclama por novos parâmetros.

A doutrina do direito tributário brasileira, desde o início de sua construção científica, enxergou apenas o seu prisma fiscalizatório. Deixou de lado a possibilidade de ver o ângulo do desenvolvimento e da transformação social que a tributação possibilitava. Podemos perceber a ausência em Rubens Gomes de Sousa, para quem a expressão direito tributário seria tudo que envolvesse o comportamento das autoridades fiscais em relação aos contribuintes no que tange à fiscalização e cobrança dos tributos. “Com isto”, leciona, “já temos uma definição preliminar do que seja o direito tributário: é o direito que regula a cobrança e fiscalização dos tributos”.[3]

Embora Ruy Barbosa Nogueira lecione que se deva manter o equilíbrio entre a teoria e a prática, uma vez que, tanto uma quanto outra, “exigem colaboração recíproca na solução das questões jurídicas”,[4] conferiu maior valor à prática. Isso porque, para Ruy Barbosa Nogueira, a prática “sente primeiro a solução jurídica” por lidar com as necessidades reais, ao contrário da doutrina, que trabalharia com hipóteses. A prática de Ruy Barbosa Nogueira, no entanto, é limitada pela jurisprudência que se extrai dos Tribunais. Desconsidera todo o direito que é sentido independente de uma autoridade impondo uma decisão. O direito não existe somente quando é aplicado por uma autoridade, o direito existe além da autoridade e antes dela. A autoridade é criada pelo próprio direito.

Ruy Barbosa Nogueira prega, contudo, uma metodologia de estudo bem ampla para o Direito Tributário que vai desde a pesquisa da relação fática, o conhecimento da legislação, a interpretação, integração e aplicação até a elaboração de lei. Em suas lições, “o jurista não tem apenas a missão de conhecer e aplicar a lei, mas ainda de fazer juízos de valor, criticar, sugerir ou aconselhar a elaboração ou correção da legislação”. O jurista para essa empreitada deve, leciona ainda, “se apoiar em fundamentos filosóficos, sociológicos, políticos, econômicos, jurídicos, éticos, etc., sem perder de vista os resultados da prática e os requisitos da técnica”.[5]

Em que pese a possibilidade dessa abertura axiológica, que abriria espaço para a solidariedade, o Direito Tributário, para Ruy Barbosa Nogueira, limitava-se a uma estreita relação entre “fisco e contribuinte” em torno da “imposição, fiscalização e arrecadação” de tributos.[6] Isso se coaduna com a sua maior valorização da prática, no sentido restrito que atribui ao termo. O direito tributário, então, se aprisionou em seu status fiscalizatório. Essa postura restrita influenciou grande parte dos juristas que tiveram contato com a doutrina de Ruy Barbosa Nogueira e passaram a ver o direito tributário a partir da prática dos tribunais.

As questões axiológicas, principalmente a possibilidade de desenvolvimento dos seus aspectos jurídicos-tributários, não encontraram espaço nos anos que se seguiram no Brasil. Isso se reflete no conceito que a doutrina nacional ainda tem do direito tributário. Para Luciano Amaro, por exemplo, direito tributário é a “disciplina jurídica dos tributos”. Significa que em seu âmbito conterá “o conjunto de princípios e normas reguladoras da criação, fiscalização e arrecadação das prestações de natureza tributária”.[7] O direito tributário se tornou desumano, se tornou frio e insensível. Muitas questões relacionadas à tributação não chegam aos tribunais, como, por exemplo, a concessão de certos benefícios fiscais a certos grupos de interesses, sem que se reflita sobre os pressupostos e os efeitos do privilégio.[8] Também a questão da concentração de renda no Brasil, que aumenta a desigualdade e que poderia ter na tributação um grande aliado. E tantos outros assuntos que extrapolam a análise exclusiva da semântica da lei.

Mas a Constituição previu como objetivo fundamental da República construir um sociedade “livre, justa e solidária”. Desejou, também, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. A Constituição quis, portanto, uma comunidade mais justa, que significa caminhar ao encontro da liberdade, igualdade e solidariedade. Boa parte da doutrina, contudo, desenvolveu mais a liberdade e igualdade, embora haja o aprisionamento na legalidade e igualdade formal, que se coadunam com a visão semântica da norma. Esquecemos da solidariedade.

O objetivo da tese, então, é desenvolver, sistematizar e estruturar a solidariedade no campo tributário. Pretendemos nos afastar da consideração apenas linguística e normativa, para a adoção de fundamentos axiológicos e filosóficos em dialética com a realidade, com a determinação dos princípios de legitimação e reflexão sobre institutos centrais. Com isso, queremos demonstrar que é possível a construção de um sistema tributário, que se fundamente na solidariedade como princípio de legitimação, tornando-o mais justo.

No primeiro capítulo pretendemos estabelecer as bases do pensamento a partir da conjugação de valores tradicionais com reflexões mais próximas à solidariedade. Assim, realçaremos os princípios de legitimação da tributação, com especial enfoque para a solidariedade, sem esquecer da igualdade e liberdade, para lhes conferir conteúdo mais substancial. A ideia é mostrar que eles se influenciam em um mesmo nível axiológico, cada qual com seu conteúdo.

No segundo capítulo, o objetivo é permitir que a solidariedade,  a partir do seus aspectos axiológicos e filosóficos, influencie determinadas categorias jurídicas importantes para a estrutura do sistema fiscal, tais como o Estado Fiscal, o poder tributário, a redistribuição de riqueza, a progressividade e o mínimo existencial. A ideia é conferir um novo enfoque, para que se afaste do individualismo.

No terceiro capítulo, veremos o arquétipo da solidariedade e como se comporta na realidade – no que se convencionou chamar solidariedade de grupo. Nesse ponto, o objetivo é conferir um pouco de sistematização e racionalidade com o desenvolvimento de seus dois aspectos: o interno e o externo. Com essa estrutura esperamos que a solidariedade ganhe mais atenção no campo tributário.


[1] cf. SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: RT, 1968, p. 78.

[2] SANTIAGO, Julio Cesar. A Importância do Princípio da Solidariedade no Direito Tributário. Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 106, p. 49-72, 2012.

[3] SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. Edição Póstuma. São Paulo: Resenha Tributária, 1981, p. 30.

[4] NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 23.

[5] NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Op. cit., p. 24.

[6] NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Op. cit., p. 25.

[7] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 2.

[8] Infelizmente a postura do STF em atribuir aos benefícios fiscais o qualificativo de “favor fiscal” tem atrapalhado o debate sobre a concessão de certos privilégios (Cf. SANTIAGO, Julio Cesar. Os Benefícios Fiscais como Instrumento de Política Tributária e o Mito do “Favor Fiscal” na Jurisprudência do STF. In: CASTRO, Flávia de Almeida Viveiros de (org). Temas de Direito Fiscal. Rio de Janeiro: Puc-Rio, 2014, p. 281-311).

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